sexta-feira, 7 de maio de 2010

és vida e eu não sabia

(enquanto lia hilda hilst)

Engoli as palavras que desceram arranhando, como se gritassem o insulto dentro em mim.
Da língua, o gosto do sangue estranhou na minha boca, sabor do meu próprio veneno. Bebi dele, e agora o vejo impresso nessas letras frias. Estranheza e ímã, olhos grudados no papel.
Como era fria a noite! Nós, duas estranhas, estranhamente sentadas à mesa. O colarinho branco, leve, boiava sobre o ouro do malte. As gotas escorriam do copo suado, desenhando trilhas verticais para morrer no círculo de papel. No burburinho do bar, pontuamos algumas identidades, perfurando discretamente a crosta de que somos feitas. Ligeiras, tímidas, austeras, cuidadosas com as palavras.
Era estranha ao corpo a tua boca; autônoma, rubra, contrastando com o branco dos dentes. Falavas de coisas que se esvaíam, sem nexo, pois só a boca eu via. E eu a desejei.
Deixamos o bar para nos enfiar pela noite, a garoa pousando de leve, deixando-a mais funda, mais completamente noite. Abraçadas, tu e eu, íntimas agora, desaparecíamos no escuro denso que se fazia entre a luz dos postes. Halos se formavam ao redor das luzes, emolduradas de neblina. Tu e eu - risos- desarmadas, colegiais, espalhando a água das poças nas pisadas.
Chamas-te Vida? És Vida e eu não sabia? Como saber-te tão de pronto, no susto? Como adivinhar-te em tão breves e cortantes momentos? És Vida, boca escarlate e sedutora?
Mas como desejar-te tanto, se de ti eu mal conheço? Se brincas de esconde-esconde com teus mistérios? Como viver-te sem perder a mim, no carmim da tua boca? Sem compreender-te, diáfana, fantasma? Como perder-te, se nem a tive e me escapas todo o tempo, imponderável? Se te esvais enquanto se expele o álcool que bebemos?
Que eu pelo menos possa viver na alegria tua, ou no silêncio de quando escondes, brancos, os dentes, cerrada a boca de encantos. E que aquele, que sem mim há de viver chorando, possa conhecer a tua boca rubra, e nela sucumbir, como eu, em inferno e paraíso. Que eu te conheça enquanto se faz tempo.

angela nabuco

4 comentários:

  1. Que beleza de texto! Maduro, inteligente, falando da sensação provocada pela leitura de Hilda Hilst... Ela, sempre capaz de revirar nossas entranhas! Foi um prazer, querida Ãngela.

    ResponderExcluir
  2. Angela:Cordiais saudações!
    belíssimo texto, que se permitir, com todos os crédios, publicarei em meu blog(http://clevanepessoa.net/blog.php.
    rtambém sou leitura da fabulosa Hilda Hilt, uma forte mulher de seu tempo e à frente dele...
    Hoje, por acaso, cheguei a um blog sobre a "Manchester Mineira", onde estudei, fui do NUME,trabalhei na Gazeta Comercial...Cursei psicologia até ao oitavo período (no CES) , completado em Belo Horuzonte, na FUMEC.Lá, nesse blog (:http://manchestermineira.blogspot.com/2010/07/academia-mineira-de-letras-fundada-em.html?showComment=1280376213583) publicavam o discurso de Angela Togeiro ao apresentar-me á AFEMIL, aqui em Belo Horizonte, onde resido e a história da Academia à qual você pertence...Busquei-a pelo Google e aqui estou...Pelo visto,essa, é "a madrugada de Juiz de Fora".Um abraço:
    Clevane Pessoa
    clevaneplopes@yahoo.com.br

    ResponderExcluir
  3. Voltei porque gostei demais deste texto, Angela. Lindo momento de introspecção.
    Bjos

    ResponderExcluir
  4. Clevane, publique à vontade, será uma honra! Maria Helena, a amiga e poeta na qual tento me mirar!

    ResponderExcluir