segunda-feira, 16 de março de 2009

o próximo

A sala estava lotada. Em comum, aquelas pessoas tinham a pobreza, denunciada pelo aspecto maltratado. Algumas fisionomias estavam pensativas, olhar desconsolado para as próprias lembranças. Outras tinham as sobrancelhas contraídas, juntando-as numa ruga vertical que falava da preocupação. Muitas dividiam seus sofrimentos, numa conversa de cantilena, cujo burburinho era interrompido por um pigarrear ou tosse ocasional. Às vezes alguém levantava a voz em protesto pela demora, mesmo sabendo que seria inútil: a espera seria longa e inevitável. Era a manhã de um verão impiedoso que o ventilador de teto mal conseguia atenuar. O cheiro ácido de suor ocupava todo o ambiente.
- Próximo!
Ela se levantou devagar e passou pela porta estreita, num andar cuidadoso, quase com medo de pisar. Fosse pela magreza ou pela humildade, os ombros se encolhiam para frente, e a tornavam ligeiramente corcunda. Os cabelos eram grisalhos e lisos, amarrados atrás na forma de um coque. Não deveria ser tão velha quanto aparentava, mas a vida certamente lhe roubara alguns anos no aspecto e na saúde. As sandálias havaianas que lhe calçavam os pés condiziam com o vestido de chita estampada, largo nas ancas, cujas alças se penduravam nos ombros ossudos, como num cabide. No comprimento, passava bastante dos joelhos e mostrava que o corpo, antes maior e capaz de preencher o vestido, minguara bastante. Sentou-se e esperou pacientemente a ordem para começar a fala. Respirava com dificuldade.
- Pois não?
Ao ouvir a pergunta, ela começou a vasculhar a bolsa até encontrar um plástico transparente envolvendo um papel com garranchos. Livrou o papel do saco, com os dedos apressados: não queria perder o tempo precioso da consulta. O médico recostou na cadeira, impaciente com a demora.
- Doutor, eu escrevi para não esquecer de nada. Estou muito cansada, não agüento mais cuidar da minha casa. Sinto uma dor nas cadeiras e as pernas incham quando eu fico de pé. As juntas também doem, estão um pouco enferrujadas; é mais de manhã, na hora que eu levanto...
- Aonde não dói? Interrompeu o médico.
Ela respondeu com fala mansa, de palavras escolhidas, medrosa de contrariar.
- O pior é a dor no peito, doutor. Se o senhor resolver isso, eu já fico satisfeita.
Estetoscópio em posição, ele se debruçou sobre a mesinha estreita que o separava da mulher. Auscultou-lhe o coração: batidas regulares, ausência de sopro. Verificou o pulso e a pressão: normais. A temperatura também normal, mucosas coradas. Ela o olhava com respeito e ansiedade.
- Tem tosse?
- Só um pigarro pela manhã.
- Urinando normalmente?
- Sim.
- A senhora não tem nada.
- Mas dói tanto...
- Vou receitar um calmante e tudo vai passar.
- O senhor é quem sabe...
Receita pronta e entregue, ela continuou olhando para o médico, esperando algo importante que faltava ser dito ou feito.
Ele abaixou a cabeça, apoiando-a nas mãos, entre aborrecido e cansado. Mas, pensando na enorme fila que o esperava, não demorou a chamar:
- Próximo!
Ela foi se levantando devagar, como podia, e se encaminhou para a saída. Nas costas expostas, entre as alças do vestido, um buraco largo se evidenciava, atravessando o tórax em toda a profundidade, e tendo como fundo, fininha, a pele do peito. Com boa vontade, poderia até se ver a estampa da parte da frente do vestido de chita.
Mas ele não olhou.

Angela Nabuco

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