quinta-feira, 16 de julho de 2009

zero quilômetro

O carro deveria ser novo, zerinho, condizente com o progresso nos negócios. Já aposentado, ele havia montado uma firma de consultoria e prosperou bastante. O suficiente para comprar o carrão dos sonhos, que o transformaria no mais novo integrante de um mundo fantástico. Dentro da máquina possante, seria identificado como aquele sujeito poderoso, impassível, inatingível, imbatível, e todos os íveis que pudessem existir. Aquele por quem as mulheres jovens e belas (e completamente desinteressadas) se apaixonariam perdidamente. Com ar blasé, olharia os pobres mortais, pedestres ou não, como seres menores. Abordado, dar-lhes-ia (e essa seria também a nova forma de conjugar um verbo) um olhar complacente, como concessão.
Foi para a agência de automóveis, vestido com a melhor roupa que tinha: como complemento, colocou o suéter Tommy Hilfigger, jogado sobre os ombros, num estilo sofisticado, porém casual. Já havia consultado o manual Chic de Gloria Kalil. Quanto ao modo de se vestir, não tinha mais dúvidas. Teve dúvida, sim, se levaria o maço de cigarros. Desconfiava que fumar estava meio out.
Pegou um táxi: chegar na agência de automóveis dirigindo um carro velho, poderia significar um atendimento menos diferenciado. O carrão desejado estava na vitrine, estalando de novo. Lá, despejou a exigência:
-Quero um carro possante, que não me deixe na mão!
Doutor para lá, doutor para cá, o tratamento na agência foi de primeira.
O carro custava muito mais do que ele imaginara: o valor informado pelo telefone era o do carro básico, sem os acessórios indispensáveis para que o sonho fosse completamente realizado: faltavam os oito airbags, o computador de bordo, o câmbio automático, os bancos de couro, e muitos eteceteras mais.
O vendedor, esperto, argumentava:
- Doutor, um homem da posição do senhor não pode sair por aí com um carro qualquer!
O ego inflava, massageado.
Mesmo preocupado, porque iria dar um passo maior do que a perna, não deixou que isso transparecesse no rosto, que permanecia tranqüilo como se estivesse fazendo um negócio tão corriqueiro quanto a compra de uma camisa. Depois do test-drive, soube que não resistiria à tentação. Mais adiante veria como pagar pela extravagância: os Personalité, os Van Gogh e os Prime da vida certamente o ajudariam.
A grande estréia seria, para sempre, inesquecível. O automóvel brilhava na tarde ensolarada. Mesmo sem nunca ter entrado num carro como aquele, ninguém poderia negar: dirigi-lo, devia ser um prazer quase sexual! Orgástico!
Não foi direto para casa. Passeou por aí, curtindo o brinquedo novo. Parado no semáforo, disfarçado pelos óculos Armani, conferia, espiando de soslaio, para saber se estava conseguindo o efeito desejado. Sim, as pessoas olhavam com curiosidade para aquela beleza faiscante sobre quatro rodas, mas também olhavam para ele, com um reconhecimento respeitoso pelo homem de sucesso que era. Mal via a hora de exibi-lo aos conhecidos, paqueras e afins.
Já tomando o caminho de casa, diminuiu a velocidade para subir uma ladeira, seguida de uma curva fechada. Na virada, foi rendido por três sujeitos aos berros, armas apontadas para ele, bloqueando a passagem. O automóvel não era blindado, e não lhe restava outra opção senão parar. Eles invadiram o carro, nervosos e agressivos:
- Passa para o banco do carona, rápido!
Tremendo, ele obedeceu, mas arriscou a pergunta:
- O senhor me deixa saltar?
- Por enquanto não, mais velho! Mas fica tranquilo, nós é tudo profissa. Só quero um carro possante que não deixe a gente na mão!
Humilde, ele objetou:
- O senhor não pode sair por aí com um carro qualquer!
- Menos conversa fiada, bacana, e vai passando o celular, o relógio e a carteira.
Assim que fizeram a limpa, ele foi informado que poderia saltar. Depois, eles deixariam o carro em algum lugar da cidade.
- Será que daria para o senhor me dizer aonde?
- Que conversa é essa, meu chapa, tá querendo moleza? Tá pensando o que?
- O senhor me desculpe, é que eu não tenho prática de assalto: não sei o que posso e o que não posso perguntar.
- Desinfeta, vai!
E ele foi empurrado do automóvel. De pé, no meio da rua, viu o carrão desaparecer numa arrancada fenomenal. Desconsolado, chegou a balançar a mão, num aceno discreto, bem de leve. Sem entender bem porque, balbuciou:
- Muito obrigado!
Angela Nabuco

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